xoves, 29 de agosto de 2019

Frédéric Bazille: Flores

Johannes Grenness: Escena de mar con rapaz

 De Alberto Caeiro: O guardador de rebanhos

Como quem num día de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo... 

mércores, 21 de agosto de 2019

Quina e o garoto

-Já ceaste? -disse, sucintamente, com aquela sua busquidão orgulhosa que era antes humildade, desejo de tolerância, apelo de harmonia. Ele ergueu os olhos, que se voltaram para a Quina, devagar, como se o entendimento tardasse em achar a direcção daquela voz, o sentido daquelas palavras. Eram uns olhos apagados, mortos, sem a sua radiosa expressão de malícia, e pareciam vasados e sem cor. Ela sentiu esfriar-se-lhe o coração.

-Então que foi? -pergunotou, agora cheia de alarme e mais curiosa, até do que perturbada.

Como resposta, o rapaz começou a chorar. Um homem de trinta anos que chora, ou é um imbecil ou é um poeta; a menos que uma dessas razões que desabam como uma avalanche sobre os temperamentos mais imutáveis venha convulsionar-lhe a alma, arrancando dela as comoções ais terríveis -mais terríveis, ainda por serem isoladas e surgirem num campo sem essa prevenção constante, proporcionada pela experiência do pessimismo, que é escudo do infortúnio e que melhor conhecem as mulheres. Quina compreendeu  que alguma coisa de único acontecera na vida daquele homem, e sentou-se defronte dele para o interrogar. O que soube deixou-a perplexa, tímida para julgar, e dorida por aquele lastimoso relato.
Agustina Bessa Luis: A sibila (p.132)

venres, 2 de agosto de 2019

Manuel António Pina: Um Sítio Onde Pousar a Cabeça, 1991

 Junto à água

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
 
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.


xoves, 1 de agosto de 2019

El espejo (poema de Luis Escavy; foto de Michael Bidner)

CUANDO entro en la ducha, cuando salgo,
me interrogo a menudo, me evalúo
los antiguos errores, las heridas,
y me abrazo y contemplo un cuerpo frágil
desnudándose frente a la verdad.
La verdad es que no somos casi nada.
Solo algo de piel y pensamiento.
Cuando dejo de verme, duele menos
este hombre que soy y el que me mira
a través de los años.

A música calada, a soedade sonora